domingo, 18 de março de 2012

Conto produzido por quem sabia das coisas!


Contos: A Carteira[1]
Machado de Assis
... DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar‑se, apanhá‑la e guardá‑la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:
– Olhe, se não dá por ela; perdia‑a de uma vez.                       
– É verdade, concordou Honório envergonhado. Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil‑réis[2], e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias,  e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou‑se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem‑se, e os jantares a comerem‑se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.
– Tu agora vais bem, não? Dizia‑lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.
– Agora vou, mentiu o Honório. A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, com que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais. D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia‑se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política. Um dia, a mulher foi achá‑lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu‑lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou‑lhe o que era.
– Nada, nada.
Compreende‑se que era o medo do futuro e o horror da miséria.
Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava‑lhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou: emprestado, para pagar mal, e a más horas. A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil‑réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse‑lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar‑lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde.  Tinha‑se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua. da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou‑a, meteu no bolso, e foi andando. Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, ‑‑ enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou‑se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostou‑se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava‑lhe se podia utilizar‑se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá‑la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam‑no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer‑lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar‑lha; insinuação que lhe deu ânimo.
Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou‑a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu‑a, e ficou trêmulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil‑réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar‑se‑ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardá‑la.                                                    
Mas daí a pouco tirou‑a outra vez, e abriu‑a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu‑se e contou: eram setecentos e trinta mil‑réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava‑o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí‑lo. Restituí‑lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal. "Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro," pensou ele. Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou‑a por fora, e pareceu‑lhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dous cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele. A descoberta entristeceu‑o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou‑se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous empurrões, mas ele resistiu. "Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer." Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado; e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.
– Nada.
– Nada?
– Por quê?
– Mete a mão no bolso; não te falta nada?
– Falta‑me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?
– Achei‑a eu, disse Honório entregando‑lha. Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu‑lhe as explicações precisas.                                                  
– Mas conheceste‑a?
– Não; achei os teus bilhetes de visita. Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar.
Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu‑a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu‑o a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgou‑o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.


[1] Fonte:
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo. Permitido o uso apenas para fins educacionais.

[2] Acredita-se que este valor, em reais atualizados, chegaria a mais de R$ 30.000,00! (fonte: http://pt.wikipedia.org/réis)

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